TJDFT - 0713826-20.2023.8.07.0020
1ª instância - (Inativo)Juizado Especial Criminal e Juizado de Violencia Domestica e Familiar Contra a Mulher de Aguas Claras
Polo Ativo
Partes
Advogados
Nenhum advogado registrado.
Polo Passivo
Assistente Desinteressado Amicus Curiae
Partes
Advogados
Nenhum advogado registrado.
Movimentações
Todas as movimentações dos processos publicadas pelos tribunais
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04/09/2023 15:36
Arquivado Definitivamente
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04/09/2023 14:36
Juntada de Certidão
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03/09/2023 09:13
Mandado devolvido entregue ao destinatário
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01/09/2023 10:42
Juntada de Petição de Sob sigilo
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28/08/2023 09:57
Juntada de Petição de Sob sigilo
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22/08/2023 04:05
Decorrido prazo de Sob sigilo em 21/08/2023 23:59.
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18/08/2023 17:50
Apensado ao processo #Oculto#
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18/08/2023 16:57
Recebidos os autos
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18/08/2023 16:57
Expedição de Outros documentos.
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18/08/2023 16:57
Proferido despacho de mero expediente
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18/08/2023 12:27
Conclusos para despacho para Juiz(a) VIVIAN LINS CARDOSO ALMEIDA
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17/08/2023 18:52
Juntada de Petição de Sob sigilo
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16/08/2023 00:24
Publicado Decisão em 16/08/2023.
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15/08/2023 07:56
Disponibilizado no DJ Eletrônico em 15/08/2023
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14/08/2023 16:27
Juntada de Petição de Sob sigilo
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14/08/2023 00:00
Intimação
Poder Judiciário da União TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS JVDFCMAGCL Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Águas Claras Número do processo: 0713826-20.2023.8.07.0020 Classe judicial: MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA (LEI MARIA DA PENHA) - CRIMINAL (1268) OFENDIDA: KETLEY CAMILA OLIVEIRA DE MOURA OFENSOR: EDUARDO DIAS DA SILVA DECISÃO Trata-se de manifestação do MPDFT (ID 166877592) visando a intimação da vítima para esclarecer o seu gênero, uma vez que não seria possível a aplicação de medidas protetivas de urgência em defesa de vítima que seja do gênero masculino.
O MP também requer a intimação da vítima para que informe a frequência à Igreja Sara Nossa Terra, a revogação da medidas protetiva de urgência de afastamento do lar, em razão de a vítima ter deixado o local antes da intimação das medidas deferidas e a associação dos autos ao processo nº 0713878-16.2023.8.07.0020.
O representado se manifestou no ID 166914723 indicando por documentos que a vítima se identifica como pertencente ao gênero masculino. É o relatório.
Decido.
A questão cinge-se à aplicabilidade da Lei nº 11.340/2006 à vítima que se autodeclara homem transgênero, inclusive com alteração no registro civil.
A Constituição Federal – CF define como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).
Acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, destaco a lição dada pelo dr.
Manoel Jorge e Silva Neto: “(…) A dignidade da pessoa humana é o fim supremo de todo o direito; logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para fundamentar toda e qualquer interpretação. É o fundamento maior do Estado brasileiro.
Miguel Reale explica que ‘(…) o fato de poder e dever cada homem se realizar de conformidade com o seu ser pessoal, não exclui, mas antes exige o reconhecimento de ser ele partícipe de uma tarefa ou empenho comum a toda a espécie humana, ou, por outras palavras, de que os seus atos transcendem o círculo de seus interesses, ou dos grupos em que mais imediatamente se inserem, por serem, pura e simplesmente, atos humanos, suscetíveis de uma qualificação deontológica de alcance universal.
Donde resulta a emergência de uma multiplicidade de ideologias, em função das quais cada um de nós situa e legitima as suas inclinações e esperanças’.
Todavia, ‘(…) a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana.
A Constituição, reconhecendo a sua existência e a sua iminência, transforma-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em um Estado Democrático de Direito’.
Dignidade da pessoa humana e humanização do sistema constitucional.
Firmar como fundamento do Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana deixa à mostra a obrigatoriedade de pôr no núcleo central das atenções o indivíduo, quer seja para torná-lo efetivamente destinatário dos direitos de cunho elevado e sublime propósito cometido à sociedade política é o enaltecimento da dignidade das pessoas que a compõe.
Quando o elemento constituinte originário põe sob destaque a pessoa humana, consagrando a sua dignidade, tem em mira pugnar pela humanização do sistema constitucional.
Com efeito.
Se a Constituição é o estatuto jurídico no qual foram disciplinadas questões da mais alta importância para a organização do Estado brasileiro, como a previsão de eleições, duração dos mandatos, competências das unidades federativas, organização das funções estatais legislativa, executiva e judiciária, intervenção federal e tantas outras disposições da ordem, a referência à dignidade da pessoa humana funciona como cláusula de advertência para a circunstância de que, não obstante seja a Constituição o texto que disciplinará as relações de poder, o que mais importa, em suma, é colocar a serviço do ser humano tudo o que é realizado pelo estado.
Não fosse assim, se pudesse existir organização estatal fleumática, soberba e indiferente às demandas dos indivíduos, haveria de se aceitar passivamente a tese de que o estado é um fim em si mesmo e não um meio ao atingimento de finalidades que, em último grau, contemplam a melhoria das condições de vida das pessoas.
Convictamente, ‘o Estado não é fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir o seu fim. É um meio, visa à ordem externa para a prosperidade comum dos homens’. (…) Sendo a dignidade da pessoa humana o valor fonte de todos os outros valores constitucionalmente postos, deve ser utilizada como balizamento para eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público, ou mesmo para conformar o comportamento de quem quer que esteja, no caso concreto, ofendendo o Princípio Fundamental em questão.”[1] Em seu art. 3º, III e IV, a CF apresenta como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Com efeito, o art. 5º, I, da CF dispõe que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da CF.
O princípio da igualdade expressado no art. 5º, I, da CF não se limita à igualdade formal (visão tradicional), mas também a igualdade material (substancial).
Nesse sentido, o dr.
Manoel Jorge e Silva Neto: “Mas a igualdade é perseguida pela Constituição em outros domínios da atividade humana, como no contexto das relações de trabalho (art. 7º, XXX, XXXI, XXXII e XXXIV); dos direitos da nacionalidade, vedando-se tratamento distinto entre brasileiros natos e naturalizados, salvo as hipóteses descritas nas normas constitucionais (§ 2º do art. 12); dos direitos políticos, atribuindo-se idêntico valor ao voto – one man one vote, como difundido pelos anglo-saxões (art. 14, caput); nas relações de estado com o contribuinte, consolidando o princípio da igualdade no campo tributário (arts. 150, II, e 152); a igualdade para o exercício de atividade econômica, traduzindo-se na redução das desigualdades sociais e regionais e na impossibilidade de concessão de privilégios aos entes paraestatais (art. 170, VII, e § 2º do art. 173, respectivamente); e, por fim, na igualdade de condições para acesso e permanência na escola (art. 206, II).
E como deflui da leitura dos dispositivos, de modo específico dos arts. 3º, IV, e 5º, caput, a Constituição veda qualquer comportamento tendente à transgressão do princípio da igualdade.
Mas, para bem compreender o princípio em questão, é importante desvendar quem são os iguais e quem são os desiguais.
Sim, porque, ultrapassado o modelo de estado burguês, que se ocupava da dimensão meramente formal do postulado isonômico, passou o ente estatal a interferir na vida em sociedade para efetivar a isonomia de natureza substancial, que vem a ser a intervenção do estado para, ao reconhecer diferenças essenciais entre os indivíduos, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, seguindo a célebre definição aristotélica. (…) Nem toda discriminação é reprovada pelo sistema constitucional.
Embora seja verdade que a norma constitucional condene a escolha dos critérios origem, raça, sexo, cor e idade para desequiparar as pessoas, não menos certo é que, em muitas situações, o recurso aos anteditos critérios termina por configurar até mesmo imposição ditada pela circunstância da vida.
Comportamentos há nos quais se poderá perceber facilmente que, conquanto discriminatórios, não se interdita a sua realização.
Encontram-se, desse modo, as chamadas ‘discriminação legítima’ e ‘discriminação ilegítima’.”[2] O art. 226, § 8º, da CF, por sua vez, dispõe que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” No direito internacional, o Brasil se comprometeu com o combate a todas as formas de discriminação de gênero ao ratificar os seguintes acordos e convenções internacionais: Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada pelo Brasil em 1994, e à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Convenção de Belém do Pará, internalizada pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, dispõe em seu Artigo 1 que “entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
O Artigo 6º da referida Convenção Internacional afirma que: “O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação; e b) o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.” Por sua vez, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, dispõe que: “PARTE I ARTIGO 1º Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” No ordenamento jurídico interno, a Lei nº 11.340/06 criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, obedecendo ao comando constitucional de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações domésticas e familiares.
O art. 2º da referida lei diz que toda mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Os §§ 1º e 2º do art. 3º da Lei nº 11.340/06 dispõem que serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, ao acesso à justiça, à cidadania, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, dentre outros, bem como determina ao Poder Público a obrigação de desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, crueldade, opressão e violência.
O art. 5º, da Lei nº 11.340/2006, dispõe que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada em gênero – isto é, nos padrões, estereótipos e papeis socialmente designados ao gênero feminino – que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Em seu art. 7º, a lei apresenta um rol exemplificativo das formas de violência de gênero, como as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
A partir da interpretação literal das normas indicadas, pode-se concluir que a legislação pátria somente protege as mulheres cisgêneras contra a violência praticada no âmbito familiar e doméstico.
No entanto, os Tribunais brasileiros vêm entendendo que a Lei nº 11.340/06 pode e deve ser aplicada a mulheres transgêneras, mesmo que não tenha havido alteração em seus registros civis (Precedentes: STJ: REsp 1.977.124/SP; TJDFT: Acórdãos nºs 1184804, 1089057 e 1663969).
Em razão da complexidade da matéria, especialmente em razão do modo transversal com que o gênero influi na sociedade, há distinções conceituais importantes de serem destacadas com o fim de facilitar a compreensão do tema.
O primeiro conceito a ser explicitado é o de “sexo”.
O “sexo” de uma pessoa diz respeito à designação dada à pessoa no ato de seu nascimento, com base nas suas características biológicas, podendo ser do sexo “masculino”, “feminino” ou “intersexo”.
Nesse sentido, o Protocolo para Julgamentos com Perspectiva de Gênero[3] elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ conceitua “sexo” do seguinte modo: “O conceito de sexo está relacionado aos aspectos biológicos que servem como base para a classificação de indivíduos entre machos, fêmeas e intersexuais.
Em nossa sociedade, seres humanos são divididos nessas categorias – em geral, ao nascer – a partir de determinadas características anatômicas, como órgãos sexuais e reprodutivos, hormônios e cromossomos.
Atualmente, o conceito de sexo é considerado obsoleto enquanto ferramenta analítica para refletirmos sobre desigualdades.
Isso porque deixa de fora uma série de outras características não biológicas socialmente construídas e atribuídas a indivíduos – muitas vezes em razão de seu sexo biológico – que têm maior relevância para entendermos como opressões acontecem no mundo real.
Esse ponto será elaborado a seguir, mas, podemos pensar que um bebê que nasce com cromossomo XX é, geralmente, classificado como “fêmea”.
A partir daí, atribuímos a essa criança uma série de características, que não são biológicas.
Não é incomum, por exemplo, presentear essa criança com bonecas.
Isso ocorre porque construiu-se a ideia de que meninas gostam de praticar atividades relacionadas ao cuidado.
Por mais que muitas meninas de fato gostem de brincar com bonecas, essa não é uma característica biológica nata, mas, sim, algo socialmente construído.
A naturalização, fenômeno bastante comum, é exatamente essa errônea classificação de algo construído culturalmente como característica biológica e que indevidamente é usada como justificativa para admitir determinadas desigualdades.
O conceito que melhor abarca esses aspectos sociais é o conceito de gênero.” O próximo conceito relevante a ser explicitado é aquele dado a “gênero”.
O conceito de “gênero” diz respeito aos papeis sociais que cada gênero ocupa socialmente, podendo uma pessoa ser do gênero “feminino”, “masculino”, “agênero”, “gênero fluido”, “não-binário”, dentre outros.
Nos termos do Protocolo para Julgamentos com Perspectiva de Gênero do CNJ: “Utilizamos a palavra gênero quando queremos tratar do conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos.
Ao passo que sexo se refere à biologia, gênero se refere à cultura.
Quando pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas características biológicas; pensamos também em uma série de construções sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos: gostos, destinos e expectativas quanto a comportamentos.
Da mesma forma, como é comum presentear meninas com bonecas, é comum presentear meninos com carrinhos ou bolas.
Nenhum dos dois grupos têm uma inclinação necessária a gostar de bonecas ou carrinhos, mas, culturalmente, criou-se essa ideia – que é tão enraizada que, muitas vezes, pode parecer natural e imutável.
A atribuição de características diferentes a grupos diferentes não é, entretanto, homogênea.
Pessoas de um mesmo grupo são também diferentes entre si, na medida em que são afetadas por diversos marcadores sociais, como raça, idade e classe, por exemplo.
Dessa forma, é importante ter em mente que são atribuídos papéis e características diferentes a diferentes mulheres.
Esse tema será elaborado de maneira mais detida na Parte I, Seção 2.a.
A ideia de que associamos características culturais historicamente determinadas a certos grupos – o que, então, passa a constituir a forma como eles são vistos e tratados – é o que se encontra por trás da famosa frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, da filósofa Simone de Beauvoir.
Ser mulher não significa nascer do sexo feminino (ou seja, ser uma ‘fêmea’), mas, sim, ver-se atribuída de uma série de características que vão para além da biologia.” A “identidade de gênero”, por sua vez, refere-se à orientação de gênero que a pessoa possui, ou seja, com qual gênero (papeis sociais) a pessoa possui maior identificação.
Não se trata de uma escolha individual, mas sim de orientação.
Nos termos do Protocolo para Julgamentos com Perspectiva de Gênero do CNJ: “Conforme exposto acima, quando falamos em gênero, estamos nos referindo a características socialmente construídas, atribuídas a indivíduos de acordo com o seu sexo biológico.
Apesar de certas atribuições serem tão enraizadas a ponto de parecerem naturais e necessárias, elas são, em realidade, artificiais e, portanto, não fixas: muitas vezes, uma pessoa pode se identificar com um conjunto de características não alinhado ao seu sexo designado.
Ou seja, é possível nascer do sexo masculino, mas se identificar com características tradicionalmente associadas ao que culturalmente se atribuiu ao sexo feminino e vice-versa, ou então, não se identificar com gênero algum.” Assim, uma pessoa pode ser cisgênera (pessoa que possui a sua identidade de gênero igual ao sexo determinado no nascimento), transgênera (pessoa que possui sua identidade de gênero diferente do sexo determinado no nascimento) ou não-binária, dentre outros.
Deste modo, se uma pessoa foi designada no nascimento como sendo do sexo feminino, mas se identifica (possui sua orientação de gênero) com o gênero masculino, essa pessoa é um homem transgênero.
Da mesma forma, uma pessoa designada no nascimento como masculino, mas que se identifica com o gênero feminino, é uma mulher transgênera.
As pessoas cisgêneras são aquelas que possuem sua orientação de gênero igual à designação dada no nascimento.
Os “estereótipos de gênero” dizem respeito a ideias do que cada gênero representa para a sociedade.
Nesse sentido, o Protocolo para Julgamentos com Perspectiva de Gênero do CNJ: “Conforme exposto acima, o conceito de gênero diz respeito a um conjunto de ideias socialmente construídas, atribuídas a determinado grupo.
Essas ideias são cristalizadas no que se convencionou chamar “estereótipos de gênero”.
Os estereótipos traduzem visões ou pré-compreensões generalizadas sobre atributos ou características que membros de um determinado grupo têm, ou sobre os papéis que desempenham ou devem desempenhar, pela simples razão de fazerem parte desse grupo em particular, independentemente de suas características individuais.
A ideia de estereótipos de gênero é muito importante, na medida em que, quando permeiam – consciente ou inconscientemente – a atividade jurisdicional podem reproduzir inúmeras formas de violência e discriminação. (…) Quando pensamos sobre estereótipos de gênero, é impossível fazer uma lista exaustiva sobre o seu conteúdo.
São muitos e, como dito, variam de acordo com marcadores sociais.
Ajuda, entretanto, a expor alguns padrões de manifestação.
Dentre outros, podemos classificar estereótipos de gênero como: (i) relacionados ao sexo; (ii) relacionados à sexualidade; (iii) relacionados a papéis e comportamentos; e (iv) estereótipos compostos.
Estereótipos relacionados ao sexo são aqueles centrados em diferenças biológicas (ex.: homens são mais racionais e mulheres, menos).
Os sexuais demarcam, dentre outros, as formas aceitáveis de sexualidade (ex.: heterossexualidade compulsória) e ideias sobre como grupos se comportam sexualmente (ex.: mulheres brancas são recatadas, mulheres negras são erotizadas; e homens não conseguem se controlar).
Ainda, temos a atribuição de comportamentos (ex.: homem deve ser provedor e mulher, cuidadora).
Por fim, os estereótipos “compostos” seriam aqueles que interagem com outras categorizações que assinalam atributos, características ou papéis a outros grupos marginalizados.
Sobre essa última categoria, é importante refletir sobre a intersecção de marcadores, na medida em que todos os estereótipos seriam compostos.” Antes de adentrarmos ao tópico sobre a aplicabilidade ou não da Lei nº 11.340/06 a homens transgêneros, convém dar destaques a alguns julgados em relação à aplicabilidade da Lei nº 11.340/06 às mulheres transgêneras. “A Lei Maria da Penha (L. 11.340/06) foi criada com o objetivo de criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, além de convenções e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, e estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (art. 1º).
Para os efeitos da lei, caracteriza violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (art. 5º).
E o âmbito da unidade doméstica e familiar contra a mulher compreende o espaço de convívio permanente de pessoas, ‘com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas’ (art. 5º, I).
Crime em razão do gênero é o cometido contra a vítima em razão do gênero feminino, motivado pela vontade de oprimi-la e subjugá-la.
Mas não é só.
A lei objetiva assegurar maior proteção a vítimas do gênero feminino que também se encontrem em situação de vulnerabilidade no âmbito doméstico e de intimidade familiar.
A vítima, na delegacia, disse que embora tenha sexo biológico masculino, se identifica e tem nome social de mulher.
Tem relação afetiva com o ofensor há três anos.
Ele, que é usuário de drogas, sempre foi agressivo e violento.
Já tentou romper o relacionamento, mas ele a obriga a voltar.
Reside na mesma residência do ofensor. (…) Não obstante o sexo biológico da vítima, ela se identifica como mulher e informa que deseja ser tratada como tal, fazendo uso de nome social feminino.
O cenário é de violência física, moral e psicológica praticado em razão do gênero feminino, no âmbito da unidade doméstica – vítima e agressor viviam como casal, sendo a vítima, transexual, a mulher do relacionamento.
Embora a vítima não tenha modificado o nome em seu registro civil – essa é opção e não obrigação -, se apresenta na sociedade como mulher e faz uso de nome social feminino, além de se apresentar como mulher, como se verifica nas fotografias de seu prontuário civil na polícia (ID 42254989 – p. 28).
Não é razoável excluir a vítima do âmbito de proteção da Lei Maria da Penha, que visa a proteger o gênero feminino, e não apenas pessoas do sexo biológico feminino.
Esse o entendimento recente do e.
STJ, segundo o qual a L. 11.340/06 é aplicável não apenas a pessoas do sexo biológico feminino, mas também mulheres transexuais, que se identificam como gênero feminino.
Confira-se: (…) Evidente a situação de vulnerabilidade da vítima perante o agressor, que a espancou, cortou seus cabelos com faca e a ameaçou de morte caso ela viesse a se relacionar com outro homem.
As circunstâncias indicam que as condutas do ofensor foram motivadas pelo gênero da vítima – mulher transexual - e praticadas no contexto doméstico e de intimidade familiar, o que justifica a competência do juizado especializado.
Conheço do conflito e declaro competente o juízo suscitado – 1º Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Ceilândia – DF.” (TJDFT.
Voto do Desembargador Jair Soares, Relator do CONFLITO DE JURISDIÇÃO 0742599-72.2022.8.07.0000) “(…) A abrangência da conceituação histórico-social do gênero é superior a do sexo biológico, pois trata de características psicológicas e comportamentais do indivíduo, a depender de seu fenótipo, se masculino ou feminino.
Na perspectiva de gênero, essas características são produto de uma situação histórico-cultural e política; as diferenças são produto de uma construção social.
Portanto, não existe naturalmente o gênero masculino e feminino.
Ou seja, a definição de gênero reclama o padrão histórico e cultural de opressão machista e de objetar a mulher.[2] A respeito da questão de gênero tratada, mutatis mutandis, este Tribunal de Justiça, já admitiu proteção extensiva da Lei Maria da Penha à transexual feminina, ainda que não submetida à cirurgia de transgenitalização e sem a alteração definitiva do registro civil, com fundamento nos seguintes argumentos: (...) O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa.
A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha.
Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher 3 Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico.
Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese.
A propósito, a Comissão de Comissão e Justiça do Senado Federal, em 22 de maio de 2019, aprovou, em caráter terminativo, o Projeto de Lei do Senado 191, de 2017, que inclui as mulheres transgêneras e as transexuais sob a proteção da Lei Maria da Penha.
De acordo com a ementa da proposição legislativa, a alteração da Lei 11.340/2006 visa ‘assegurar à mulher as oportunidades e facilidades para viver sem violência, independentemente da sua identidade de gênero.’ (…)
Por outro lado, não se pode deixar de considerar a situação de dupla vulnerabilidade a que as pessoas transgêneros femininas, grupo ao qual pertence a ofendida, são expostas ‘por um lado, em virtude da discriminação existente em relação ao gênero feminino, e de outro, pelo preconceito de parte da sociedade ao buscarem o reconhecimento de sua identidade de gênero’.
A questão é complexa e a jurisprudência, sobre a figura do feminicídio, ainda está em construção, notadamente quando se trata de crime cometido por razões de característica do sexo feminino, envolvendo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, fora do contexto da violência doméstica e familiar.
Para os Tribunais pátrios, a amplitude que se deve dar ao sujeito passivo do tipo penal do feminicídio é tema ainda mais recente, revelando o ineditismo da matéria.
Na espécie, a inclusão da qualificadora do feminicídio decorreu do fato de o crime ter sido praticado (fl. 2B), ‘por ódio à condição de transexual de Jéssica’, uma vez que, enquanto os acusados agrediam fisicamente a vítima, também diziam a ela que ‘era para virar homem’.
Assim, malgrado os fatos descritos na denúncia não se tratarem de violência praticada no âmbito doméstico e familiar, a imputação do feminicídio se deveu ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher trans da ofendida (inciso II do §2º-A do art. 121 do CP), extraídos da conduta delitiva preconceituosa atribuída aos réus.” (TJDFT.
Voto do Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior, Relator do RECURSO EM SENTIDO ESTRITO nº 0001842-95.2018.8.07.0007) “II.
Contextualização L.
E.
S.
F. é mulher transexual e sofreu agressões por parte do seu próprio pai, em razão dessa sua condição. (…) III.
Os fundamentos do acórdão recorrido e sua crítica Primeiramente, cumpre bem delimitar as razões de decidir do Tribunal de origem usadas com vistas a afastar a aplicação da Lei n. 11.340/2006 para a proteção de uma mulher transgênero.
Pela detida leitura do voto condutor do acórdão recorrido, percebe-se que, apesar de ele reconhecer diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
Vale dizer, chama a ciência para cingir a imposição de medidas protetivas, exclusivamente, às mulheres portadoras dos cromossomos XX em sua constituição genética.
Ademais, repisa que o conceito de identidade de gênero é diverso de identidade sexual e que apenas essa última ‘está à disposição do legislador para ser manejada’ (fl. 92), de modo que a definição de mulher contida na Constituição Federal não pode ser interpretada de forma diversa da biológica.
Conclusão outra ofenderia os princípios da tipicidade estrita e da analogia in malam partem.
Entendo estar semelhante argumento apoiado em falso silogismo, uma vez que a pretensão da vítima, ora defendida no recurso do Ministério Público estadual, corroborada pelo Ministério Público Federal, e que ora endosso, não rejeita nem ignora a ciência.
Tampouco será o debate reduzido ao apontado (e não explicado) ‘politicamente correto’ como suposto fundamento para a aversão à biologia.
Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata.
As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias.
A propósito, aqui cabe a inserção do conceito jurídico de discriminação, trazido por Roger Raupp Rios, que, baseado em documentos internacionais, diz ser ‘qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar ao reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública' (RIOS, Roger Raupp.
Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 20, grifei).
As digressões constantes do aresto impugnado atraem as reflexões postas na introdução do ‘Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021’, desenvolvido e divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), assim colocadas: A violência transfóbica, o discurso de ódio e uma ideologia antitrans tem crescido e ganhado muita força nas redes sociais desde 2014, e fez-se mais presente em 2020 e em 2021, diante da crise política, econômica e humanitária em que nos encontramos.
Aliado a cena caótica, houve à disseminação de fakenews e o recorrente uso do trans panic como forma de ter alcance (e muitas vezes, relevância sobre a pejorativização dos grupos) na internet, angariando adeptos e aproximando grupos antagônicos para a unificação e fortalecimento de uma disputa cissexista.
O sentido inferiorizante das identidades de trans, assim como o desejo de manter essa população invisibilizada e em um lugar subalterno gera engajamento e tem promovido adoecimento, contribuindo para a vulnerabilização e criminalização de pessoas trans e Não Binárias, com diversos casos sendo denunciados em perfis no Twitter, Instagram, TikTok, Facebook e grupos de WhatsApp/Telegram.
Dentre eles, diversos ataques organizados pela aliança entre grupos historicamente LGBTIfóbicos, políticos de extrema direitas, milícias paramilitares e grupos neo-nazistas que ganharam força desde a eleição do atual governo, líderes religiosos fundamentalistas, diversos grupos que compões as redes bolsonaristas, grupos de Lésbicas, Gays e Bissexuais cisgêneros antitrans e do feminismo radical trans excludente (RADFEM/TERF) tem se mobilizado em torno de construir, fortalecer e disseminar narrativas antitrans que incitam o ódio, o medo e a desumanização de travestis e demais pessoas trans.
Seja por ação ou por omissão, muitos estados têm se furtado de reconhecer a existência de uma violência específica, que inclui a orientação sexual e/ou a identidade de gênero das pessoas como fator determinante dessa violência e das violações de direitos humanos, sociais e políticos, e pautar política de enfrentamento das mesmas, que garantam dignidade, respeito, proteção e a garantia dos direitos as pessoas trans e Não-Binárias. […] A influência religiosa junto ao estado se agrava em momentos de crise e faz crescer um forte sentimento conservador com ideais misóginos, machistas e LGBTIfóbicos, promovendo ataques a democracia, ameaças ao estado laico, enfraquecimento de políticas sociais e de apoio ao trabalhador.
Contribuindo de forma direta para o cenário distópico que temos vivenciado e colocando mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ em risco aumentado de violências, como evidenciado por todas as organizações de direitos humanos com seus dados produzidos sobre intensa violência contra os defensores de direitos humanos e de proteção a grupos minorizados. [...] O projeto de governo autoritário, patriarcal, negacionista, anti-científico, anti-direitos humanos, anti-gênero, antiLGBTQIA+ coloca um desafio ainda maior quando vemos o aparelhamento das instituições do estado, o fortalecimento de correntes alinhadas com ideologias fascistas que unem a base bolsonarista no executivo e no legislativo, nos estados e municípios, e avança no judiciário com a indicação de mais um ministro “terrivelmente evangélico”, fundamentalista e subserviente ao presidente.
Consolidando-se como um dos piores cenários para a democracia e especialmente para as pessoas LGBTQIA+. [...] Mesmo com as constantes manipulações de nossos dados, com a inclusão de narrativas falaciosas para manobrar a opinião pública, advindas de agentes do estado, é muito difícil acreditar que haja qualquer sinalização por parte do estado, destinação de verba e investimento ou avanço em políticas pró-trans.
A realidade é que pessoas trans não tem proteção e tampouco se sentem seguras em existir e viver em uma sociedade cissexista, que desumaniza essas existências, incluindo os requintes de crueldade.
E onde o próprio estado, governos e agentes público tem sido parte do problema sob diversas óticas (BENEVIDES, Bruna G.
Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 (Org). – Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p 9-15.
Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022- web.pdf.
Acesso em: mar. 2022, destaquei).
Em adição, o dossiê faz a seguinte ponderação sobre as reiteradas negativas de aplicação da Lei Maria da Penha na proteção de travestis e mulheres trans: Apesar dos avanços que vinham sendo conquistados no reconhecimento da violência de gênero contra travestis e mulheres trans, com a devida aplicação da Lei Maria da Penha em alguns casos que abriram precedentes importantes nessa discussão, Temos observado um retrocesso desse entendimento, quando acompanhamos casos em que a violação do direito à identidade de gênero tem sido permitida por decisões de juízes, que tem negado a proteção prevista na Lei Maria da Penha, alegando entre outras questões, que estas não seriam mulheres, e que, portanto, a lei não se aplicaria a elas, em uma flagrante violação dos direitos humanos da população trans.
A revista Isto É produziu uma matéria sobre a omissão do sistema judiciário com casos de violência doméstica contra mulheres trans, por desconsiderar seu gênero como válido para a proteção contra a violência de gênero.
Aliado a isso, o judiciário, muitas vezes, adota posturas transfóbicas ao emitir decisões nos poucos casos cujas denúncias são acolhidas.
Em matéria, o jornalista Fernando Lavieri elucida que o judiciário ainda trata mulheres trans no masculino, tirando, portanto, seu direito a serem acolhidas pela Lei Maria da Penha (BENEVIDES, Bruna G.
Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 (Org). – Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p 77.
Disponível em:https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022- web.pdf.
Acesso em: mar. 2022, grifei).
No capítulo ‘A epidemia crescente de transfobia nos feminismos’, a organizadora do documento não deixa esquecer o comportamento nocivo inclusive dentro dos movimentos feministas, em que, por vezes, insiste-se na "disseminação de uma ideia em que supostamente a opressão de gênero é igual para todas as mulheres cisgêneras independente de raça, classe e construção social, e que se basearia em seu sexo biológico (sistema sexo-gênero em que o gênero é informado pelo genital)"(BENEVIDES, Bruna G.
Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 (Org). – Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p 130-131.
Disponível em:https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf.
Acesso em: mar. 2022, destaquei).
Como bem pontua Roger Raupp, "a abordagem de direitos humanos das demandas de identidade de gênero, a seu turno, vislumbra a existência concreta dos indivíduos com base em um amplo leque de possibilidades, isto é, na diversidade sexual." (RIOS, Roger Raupp.
Perspectivas e tensões no desenvolvimento dos Direitos Sexuais no Brasil.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 52 n., 207, jul./set. 2015, p. 344, destaquei).
E nos lembra, ainda, que [a]s travestis, encarnando quiçá a experiência mais radical da autonomia individual diante das convenções sociais sobre o que é padronizado como 'natural' quanto ao sexo e sobre o que é tolerável pelos padrões tradicionais e dominantes de convívio entre homens e mulheres, ousam inventar um novo modo de ser em termos de gênero, transitando verdadeiramente nas 'fronteiras do gênero' (op. cit., p. 346, sublinhei).
IV.
Os números da violência contra travestis e transexuais Em 2021, foram 140 registros de assassinatos de transexuais e travestis.
A despeito da redução, em comparação com o ano de 2020 (175 assassinatos), o número foi maior do que o contabilizado em 2019 (124 óbitos).
Esses dados (extraídos do Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021, estudo realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com apoio de universidades estaduais e federais) constam em matéria publicada na página eletrônica da Agência Brasil.
A notícia é que o Brasil ocupa, pelo 13º ano consecutivo, o primeiro lugar no ranking dos países que mais matam pessoas trans no mundo (VALENTE, J.
Brasil registrou 140 assassinatos de pessoas trans em 2021.
Agência Brasil, Brasília, 29/1/2021.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2022- 01/brasil-registrou-140-assassinatos-de-pessoas-trans-em-2021.
Acesso em: fev. 2022).
Efetivamente, "[d]o total de 4.042 assassinatos catalogados pela TGEU, 1.549 foram no Brasil.
Ou seja, sozinho, o país acumula 38,2% de todas as mortes de pessoas trans do mundo".
Acrescenta que "[a] atualização de 2021 revelou ainda o total de 375 casos reportados de pessoas trans em 74 países em todo o mundo, entre 1 de outubro de 2020 e 30 de setembro de 2021.
O Brasil permanece como o país que mais assassinou pessoas trans do mundo neste período, com 125 mortes, seguido do México (65) e Estados Unidos (53)" (BENEVIDES, Bruna G.
Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 (Org). – Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p. 70.Disponível em:https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022- web.pdf.
Acesso em: mar. 2022, destaquei).
Nesse cenário, Carneiro e Mello, citando Carrara e Viana (2006), ponderam: a vulnerabilidade social que as travestis estão inseridas, uma vez que a histórica marginalização escolar e laboral desta classe a sujeita a situações mais próximas da prostituição e exposição pública a homofobia.
Os autores apontam ainda a discriminação, a violência e exclusão social como determinantes da extrema vulnerabilidade social em que esta classe se encontra (CARNEIRO, Melyssa Inêz Silva; MELLO, Antônio Cesar.
A aplicabilidade da Lei Maria da Penha Para Travestis e Transexuais, Âmbito Jurídico, 2019.
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/aaplicabilidade-da-lei-maria-da-penha-para-travestis-e-transexuais/.
Acesso em: fev. 2022, grifei). ” V.
Resistência à heteronormatividade O debate merece uma breve consideração sobre as raízes da dificuldade em se tratar temas como o dos autos sem as amarras do preconceito contra corpos estranhos na visão heteronormativa.
O diálogo com as teorias queers ainda é incipiente na literatura jurídico-penal e criminológica brasileira.
Em relação às teorias queer, pondera Salo de Carvalho: [Elas] procuram desestabilizar zonas de conforto culturais criadas pelo heterossexismo, que se estabelecem historicamente como dispositivos de regulação e de controle social, como (a) a polarização entre homens e mulheres e (b) a institucionalização da heteronormatividade compulsória.
Segundo Welzer-Lang, o "heterossexismo é a discriminação e a opressão baseada em uma distinção feita a propósito da orientação sexual.
O heterossexismo é a promoção incessante, pelas instituições e/ou indivíduos, da superioridade da heterossexualidade e da subordinação simulada homossexualidade." (Sobre as possibilidades de uma criminologia queer.
In CARVALHO, Salo; DUARTE, Evandro Piza.
Criminologia do Preconceito, racismo e homofobia nas Ciências Criminais.
São Paulo: Saraiva, 2017, p. 204, grifei).
Nesse contexto, adverte o referido autor: A naturalização da norma heterossexual, ao aprisionar as subjetividades no binarismo hétero/homossexual, cria automaticamente mecanismos de saber e de poder nos quais a diferença é exposta como um desvio ou como uma anomalia.
Definido o comportamento ou o modo de ser desviante a partir da regra heterossexual, o controle social formal é instrumentalizado nos processos de criminalização (direito penal) e de patologização (psiquiatria) da diferença.
Outrossim, para além destas respostas sancionadoras produzidas nas e pelas agências de punitividade (violência institucional), a lógica heteronormativa potencializa inúmeras outras formas de violências (simbólicas e interindividuais) nas quais a diversidade sexual é vitimizada (homofobia) (op. cit., 2017, p. 204-205, destaquei).
A elucidativa explanação segue: A teoria queer, ao dialogar com o feminismo, direcionará sua crítica, à inferiorização das diversas identidades de gênero e de orientação sexual estabelecidas no processo histórico de naturalização do ideal heterossexual.
Não se trata, portanto, apenas da denúncia da desigualdade derivada dos papéis atribuídos aos gêneros (masculino e feminino).
As teorias queer procuram, em primeiro lugar, desconstruir a hierarquia estabelecida entre hétero e homossexualidade, independentemente do gênero; e, em segundo, romper com a fixidez dos conceitos e superar a lógica binária que cinde e rotula as pessoas como hétero ou homossexuais.
Hierarquização, fixidez e binarismo o que instituem e legitimam no cotidiano formas específicas de violência homofóbica (op. cit., 2017, p. 207, destaquei).
A título de enriquecimento da discussão, ensina Paul Preciado que ‘a tomada da palavra pelas minorias queer é um advento mais pós-humano do que pós-moderno’ e alerta que ‘as políticas das multidões queer se opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se querem soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias sexopolíticas straight, que dominam a produção da ciência’ (PRECIADO, Paul B.
Multidões queer: notas para uma política dos "anormais".
In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).
Pensamento Feminista, conceitos fundamentais.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 427-429, grifei).
O sucesso do entendimento exige, portanto, a desconstrução do cenário da heteronormatividade, de sorte a permitir o acolhimento, como iguais, de pessoas com alguma diferença, para que sejam, então, tratadas com igualdade. (…)” (STJ.
Voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, Relator do REsp nº 1.977.124/SP) Desses julgados, pode-se perceber que a mulher transgênera foi abarcada na proteção da Lei nº 11.340/06, entre outros motivos, pela sua dupla vulnerabilidade e pelo preconceito contra corpos estranhos na visão heteronormativa, espécies de violências de gênero também sofridas por homens transgêneros.
O patriarcado permeia toda a sociedade brasileira e a violência de gênero – tida como violência baseada no gênero - é mecanismo de reforço da ideia de dominância do homem cisgênero.
Como afirma Dra.
Heleith Saffioti, pioneira nos estudos de gênero no Brasil: “No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.
Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. (…) A violência simbólica impregna corpo e alma das categorias sociais dominadas, fornecendo-lhes esquemas cognitivos conformes a esta hierarquia, como já havia, há muito, revelado. É exclusivamente neste contexto que se pode falar em contribuição de mulheres para a produção da violência de gênero.
Trata-se de fenômeno situado aquém da consciência, o que exclui a possibilidade de se pensar em cumplicidade feminina com homens no que tange ao recurso à violência para a realização do projeto masculino de dominação-exploração das mulheres.
Como o poder masculino atravessa todas as relações sociais, transforma-se em algo objetivo, traduzindo-se em estruturas hierarquizadas, em objetos, em senso comum.”[4] Percebe-se, assim, que as experiências vividas por homens transgêneros não são muito diferentes daquelas vividas pelas mulheres transgêneras, estando os dois grupos de pessoas sujeitas a dupla vulnerabilidade e às violências baseadas em gênero. “Nessa direção, o sujeito é múltiplo, constituído em gênero, classe e raça/etnia, e metamorfoseia-se dentro destes limites (SAFFIOTI, 1997).
Portanto, classe, gênero e raça/etnia são três identidades sociais básicas, mas não são autônomas.
As condições históricas determinam qual dessas relações será dominante num determinado momento, sem prejuízo das demais assumirem este papel em outra conjuntura (SAFFIOTI, 1997, 2013).
Tem importância o exame do nó patriarcado-capitalismo-racismo para o debate das identidades trans, afinal, pessoas travestis, mulheres transexuais e homens transexuais também são alvo da ideologia patriarcal, a qual cobre o tecido social.
A face conservadora da sociedade brasileira, cuja formação social tem a marca do escravismo e do patriarcado e cuja formação histórico-política tem o estatuto de ex-colônia, agudiza ideologias opressoras de gênero, raça/etnia, classe.
O machismo, o sexismo e o sistema patriarcal funcionam como mola propulsora dos binarismos de gênero e da herenormatividade, base das violências homofóbicas/lgbtfóbicas/transfóbicas.
Sob essas ideologias, o corpo trans, seja ele assumindo uma gramática corporal masculina ou feminina, por escapar dos padrões de gênero que incidem também sobre a sexualidade e por afrontarem o patriarcado (o status quo da dominação-exploração masculina) sofre a transfobia.
Saffiotti (2004, p. 103) dando atenção ao assunto corpo, me ajuda a concluir este parágrafo ao dizer que ‘[...] efetivamente, se a cultura dispõe de uma enorme capacidade para modelar o corpo, este é o próprio veículo da transmissão das tradições’. (…) Aos homens trans, primeiramente, cabe reconhecer que na ideologia patriarcal corpos lidos como femininos são corpos a serem dominados e não para exercerem o domínio, a supremacia.
Portanto, esses corpos, ao ousarem corporificar o gênero dominador, estão quebrando as correntes dos binarismos de gênero, mas também afrontando o patriarcado, pois mostram à categoria social homem que não há um único modo de sê-lo, seja anatomicamente, corporalmente e/ou socialmente.
Vale considerar, entretanto, que a identidade de homem trans pode se constituir acionando uma imagem masculina não hegemônica, mas também endossando um modelo hegemônico (dominador) de homem.
Afinal, não é porque um indivíduo quebrou os binarismos de gênero que ele não pode manifestar uma identidade reificada. É nesse sentido, inclusive, que não se pode estudar a temática trans apenas pelas relações de gênero.
A despeito disso, ambos os corpos, em seus diferentes caminhos trilhados no constructo de sua gramática masculina, ainda lidos como corpos femininos, são corpos que têm sofrido estupros, agressões e violências motivadas pela misoginia, sexismo, transfobia, que encontram raízes na ideologia patriarcal como aqui se tentou expor.”[5] Com efeito, os homens transgêneros sofrem de violências de gênero (feminino) desde antes de se autoidentificarem como homens.
Nesse sentido: “Há experiências comuns entre os interlocutores em se tratando da transição do gênero: o processo de auto-identificação e auto-definição como homens, geradas a partir da inadequação com as imposições atribuídas sócio-culturalmente ao gênero feminino; (…) patologização das identidades (trans), o cissexismo/transfobia/misoginia que esses sofrem, quando não acompanhados por racismo/homofobia, e outras opressões.”[6] “A temática sobre os desafios para o reconhecimento como homem na sociedade norteou as entrevistas realizadas, os homens (boys) não se caracterizam por fazer parte de grupos militância, como os homens (trans), estando aqueles a realizar uma busca por reconhecimento e respeito mais em esfera micro, no meio imediato dos interlocutores: vizinhança, família, e instituições como escola, trabalho, espaços de consumo e lazer, consultório médico entre outras.
Já os homens (trans) além da legitimação como homens em esfera micro, buscam também o reconhecimento em diferentes esferas na forma de garantias de direitos, a partir de leis, projetos sociais e políticas públicas.
Essa temática, direitos, era mais comum de ser trabalhada nesse contexto a partir do sentido negativo, quando esses direitos não estavam sendo garantidos, estavam sendo violados.
Mesmo assim, para os interlocutores, problematizar isso não era algo consensual, uma vez que nem todos consideravam situações entendendo-as como preconceito ou LGBTfobia, também porque a maioria não conhecia vários direitos e possibilidades garantidas para alguém que está no processo de transição de gênero, como já apontado.
Então, falar sobre direitos nesse grupo era sinônimo de falar da violação ou falta de direitos, eram muito comuns relatos de violência na família, na rua, escola, narrativas presentes também no contexto dos homens (trans).
A não-aceitação da condição de transição de gênero na família foi motivo para violência física, verbal, para alguns interlocutores, mas é claro que houve exceções, como relatado nas biografias resumidas, em que a família apoiou e apoia bem como foi o caso narrado por Amadeus. (...) A relação com a família costuma ser variada, mas quando se tem o apoio familiar facilita para se ter um reconhecimento como homem, seja em âmbito familiar ou social, e isso mostra ser de grande importância para os homens (boys), refletindo numa mais rápida autoaceitação de sua condição e expressão de gênero.
Mesmo que os homens desse contexto não estejam em processo de transexualização, as mudanças decorrentes da autodefinição como homem são inúmeras, inclusive, o tratamento em relação à gênero, a maneira como a família e filhos(as) os tratam, entre outros aspectos, essa mudança precisa de apoio e aceitação. (…) A família tem uma importância muito grande no contexto dos homens (boys), alguns não pensam em fazer cirurgia e apontam que uma das causas é o possível sofrimento que a família passaria, ou por conselhos dados pelas mães, pela religião que a mãe os ensinou, entre outros.
Enquanto alguns homens (trans) chegam a romper a relações com a família atrás de seus sonhos e necessidades de prosseguir com a transexualização, alguns homens (boys) interrompem ou não vão em frente com o processo de transição social do gênero por causa do medo de decepcionar familiares, ou por medo de perder o apoio dos familiares. (...) Em se tratando de outras instituições, os interlocutores relataram também várias situações de constrangimento que passaram e preconceitos, casos em que a falta de informações dos próprios homens (boys) sobre direitos dificultou a defesa deles mesmos nas situações em que tiveram que aceitar o tratamento desrespeitoso de algumas pessoas.”[7] Percebe-se assim, que a formação patriarcal da sociedade brasileira gera preconceitos contra corpos estranhos na visão heteronormativa.
Isso, aliado à dupla vulnerabilidade, faz com que os homens transgêneros sejam muitas vezes lidos como se mulheres fossem, sendo tratados pelas suas famílias e pela sociedade em geral como mulheres, e sofrendo as violências e agressões socialmente imputadas a pessoas designadas como do sexo feminino no nascimento.
Dessa forma, vemos que um homem transgênero (uma pessoa que foi designada como do sexo feminino no nascimento, mas que se identifica como do gênero masculino), pode ser lido e tratado socialmente e no âmbito familiar e doméstico como mulher e, por isso, sofre violências baseadas em gênero feminino – mesmo que sua performance de gênero seja predominantemente masculina.
Da mesma forma, uma pessoa que foi designada como do sexo feminino no nascimento, mas que se identifica como não-binária, pode ser lida socialmente e no âmbito familiar e doméstico como mulher e, por isso, também pode sofrer violências baseadas em gênero feminino.
Conforme relatório divulgado pela ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas transgêneras no mundo.
No ano de 2022, 131 pessoas transgêneras foram mortas, sendo que esse valor pode ser maior devido a falta de sistemas de informação atualizados de classificação de gênero nos órgãos de persecução criminal.
Ademais, não há dados capazes de indicar qual percentagem das vítimas de violência são homens transgêneros ou mulheres transgêneras. “Vale a pena destacar que o relatório é baseado no número de casos que foram reportados, o que mostra que esses números podem ser maiores, pois sabe-se que há uma subnotificação, e esses assassinatos - como crimes de ódio - são realizados quase sempre com muita crueldade.
Contribui para as subnotificações, a falta de uma lei que criminalize a homofobia e assassinatos de pessoas LGBTs, pesando fortemente para esses altos índices de morte.
E também, é claro, a transfobia26 e o cissexismo27 da sociedade não recebem problematização devida e muitas vezes são vistos de formas naturalizadas, com a conivência de muitos.
Além de muitas vezes as mortes de (trans) e travestis serem tratadas com reducionismos e generalizações - outras manifestações de transfobia – como, por exemplo, justifica-se o número elevado de mortes, associando-as a rixas pessoais, brigas envolvendo a profissão de prostituição e dívidas com clientes, e ao uso de drogas; criminalizando e culpando as vítimas, sem provas suficientes.
Dessa forma, vê-se que ainda há muitos problemas e desafios que envolvem essas 'vidas precárias': estigmas diversos, patologização das identidades, alto risco de sofrer violências por transfobia, falta de acesso à saúde, falta de oportunidades de escolarização e profissionalização, entre outros.”[8] Merece destaque, ainda, que os homens transgêneros possuem necessidades sociais típicas de pessoas que foram designadas no nascimento como do sexo feminino, sendo, inclusive, objeto de políticas públicas voltadas para as pessoas que menstruam (mulheres cisgêneras, homens transgêneros e pessoas não-binárias designadas no nascimento como sendo do sexo feminino), como atesta o Decreto nº 11.432/2023, que regulamenta a Lei nº 14.214/2021, voltados para o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual.
Explicitados os conceitos e peculiaridades da questão, passamos à análise da possibilidade ou não de um homem transgênero ser protegido pela Lei nº 11.340/06.
A Lei nº 11.340/06 define que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação de direitos humanos (art. 6º da Lei nº 11.340/06), bem como impõe a obrigação de o Poder Público de desenvolver políticas públicas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 1º, § 1º, da Lei nº 11.340/06).
No mesmo sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, em sua introdução, reforça que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita todas ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades.
Os Direitos Humanos são, nas palavras do Dr.
Paulo Gustavo Gonet Branco[9]: “A expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é reservada para aquelas reivindicações de perene respeito a certas posições essenciais ao homem.
São direitos postulados em bases jusnaturalistas, contam índole filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular.
A expressão direitos humanos, ainda, e até por conta da sua vocação universalista, supranacional, é empregada para designar pretensões de respeito à pessoa humana, inseridas em documentos de direito internacional.
Já a locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado.
São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra.
A distinção conceitual não significa que os direitos humanos e os direitos fundamentais estejam em esferas estanques, incomunicáveis entre si.
Há uma interação recíproca entre eles.
Os direitos humanos internacionais encontram, muitas vezes, matriz nos direitos fundamentais consagrados pelos Estados e estes, de seu turno, não raro acolhem no seu catálogo de direitos fundamentais os direitos humanos proclamados em diplomas e em declarações internacionais. É de ressaltar a importância da Declaração Universal de 1948 na inspiração de tantas constituições do pós-guerra. (…) Se é verdade que um direito fundamental peculiariza-se por estar recepcionado por algum preceito de direito positivo, é também fato que, no direito comparado, essa técnica de recepção pode variar.
No Direito brasileiro, como nos sistemas que lhe são próximos, os direitos fundamentais se definem como direitos constitucionais.” Assim, percebe-se, sucintamente, que a internalização dos direitos humanos está intimamente ligada aos direitos fundamentais constitucionalmente pre
vistos.
Dessa forma, quando a Convenção de Belém do Pará e a Lei nº 11.340/06 afirmam expressamente que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação de direitos humanos, está também declarando que é direito fundamental a vida humana livre da violência de gênero em situação doméstica e familiar.
Em se tratando de Direito Fundamental, aplicam-se os princípios específicos desse tipo de direito às normas que visam impedir todas as formas de violência doméstica e familiar de gênero, especialmente a Lei nº 11.340/06.
Assim, à Lei nº 11.340/06 aplicam-se os princípios da proibição do excesso (Verhältnismässigkeitsprinzip, Übermassverbot) e da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot), ambas facetas do princípio da proporcionalidade.
O princípio da proibição do excesso contempla os limites de conformação outorgado ao legislador.
Isso significa que, na análise da legislação aprovada pelo Poder Legislativo, deve-se verificar se os aspectos relativos à proteção do bem jurídico são necessários (Erforderlichkeit) e adequados (Geeignetheit) para atingir o objetivo da norma.
O princípio da proibição insuficiente, por sua vez, trata da proteção insuficiente a um bem jurídico.
Nas palavras do Dr.
Paulo Gustavo Gonet Branco[10]: “Ao lado da ideia da proibição do excesso tem a Corte Constitucional alemã apontado a lesão ao princípio da proteção insuficiente.
Schlink observa, porém, que se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção.
Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição do excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas.
Daí concluiu que ‘a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig in engeren Sinn)’.” Destaca-se, ainda, a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, que apregoa que os direitos fundamentais se aplicam às relações interpessoais (eficácia horizontal), e não somente às relações entre o Estado e os particulares (eficácia vertical).
Neste sentido, Dr.
Manoel Jorge e Silva Neto defende que: “(…) se, no contexto de tais relações, observa-se grande desigualdade entre os indivíduos, impõe-se o reconhecimento de aplicação dos direitos fundamentais para evitar o predomínio do arbítrio (...)”[11] No caso da Lei nº 11.340/06, ao se utilizar do critério da autodeclaração como mulher para aplicar os mecanismos de proteção da norma, percebe-se que a legislação é necessária (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) e adequada (Geeignetheit) à proteção de mulheres cisgêneras e transgêneras contra as violências praticadas em situação de violência doméstica e familiar de gênero.
No entanto, são insuficientes (schlechthin ungeeignet) para proteger outros dois grupos de pessoas que sofrem violências de gênero (feminino) similares, se não idênticos: os homens transgêneros e as pessoas não-binárias que foram designadas como do sexo feminino no ato do nascimento.
Deste modo, a utilização restrita do critério da autodeclaração como mulher para aplicabilidade da norma se revela desproporcional em sentido estrito, porque gera exclusão entre pessoas que sofrem as diversas formas de violência de gênero (feminino) no âmbito doméstico e familiar.
Assim, verifica-se um tratamento diferenciado pela aplicação atual da norma entre pessoas que se encontram em situação fática similar, em clara violação ao princípio da isonomia, na sua vertente material, bem como em violação ao princípio da proibição da proteção i -
11/08/2023 06:36
Recebidos os autos
-
11/08/2023 06:36
Expedição de Outros documentos.
-
11/08/2023 06:36
Indeferido o pedido de Sob sigilo
-
08/08/2023 10:28
Decorrido prazo de Sob sigilo em 07/08/2023 23:59.
-
02/08/2023 09:09
Juntada de Certidão
-
28/07/2023 18:16
Juntada de Petição de Sob sigilo
-
28/07/2023 16:16
Conclusos para decisão para Juiz(a) FREDERICO ERNESTO CARDOSO MACIEL
-
28/07/2023 15:33
Juntada de Petição de Sob sigilo
-
27/07/2023 16:29
Expedição de Outros documentos.
-
27/07/2023 16:28
Juntada de Certidão
-
26/07/2023 23:14
Recebidos os autos
-
26/07/2023 23:14
Proferido despacho de mero expediente
-
26/07/2023 22:37
Conclusos para decisão para Juiz(a) CARLOS FERNANDO FECCHIO DOS SANTOS
-
26/07/2023 22:35
Juntada de Petição de Sob sigilo
-
26/07/2023 09:22
Juntada de Certidão
-
26/07/2023 01:58
Decorrido prazo de Sob sigilo em 25/07/2023 23:59.
-
23/07/2023 21:39
Recebidos os autos
-
23/07/2023 21:39
Proferido despacho de mero expediente
-
23/07/2023 21:20
Conclusos para decisão para Juiz(a) ENIO FELIPE DA ROCHA
-
23/07/2023 21:12
Juntada de Petição de Sob sigilo
-
22/07/2023 14:58
Mandado devolvido entregue ao destinatário
-
22/07/2023 14:28
Mandado devolvido entregue ao destinatário
-
21/07/2023 23:16
Recebidos os autos
-
21/07/2023 23:16
Proferido despacho de mero expediente
-
21/07/2023 22:21
Conclusos para decisão para Juiz(a) ROBERTO DA SILVA FREITAS
-
21/07/2023 22:20
Juntada de Petição de Sob sigilo
-
21/07/2023 17:31
Juntada de Certidão
-
21/07/2023 17:18
Expedição de Ofício.
-
21/07/2023 16:21
Recebidos os autos
-
21/07/2023 16:21
Expedição de Outros documentos.
-
21/07/2023 16:21
Concedida em parte medida protetiva de #Oculto# para #Oculto#
-
21/07/2023 15:27
Distribuído por sorteio
Detalhes
Situação
Ativo
Ajuizamento
21/07/2023
Ultima Atualização
04/09/2023
Valor da Causa
R$ 0,00
Documentos
Despacho • Arquivo
Despacho • Arquivo
Decisão • Arquivo
Decisão • Arquivo
Despacho • Arquivo
Anexo • Arquivo
Despacho • Arquivo
Despacho • Arquivo
Decisão • Arquivo
Decisão • Arquivo
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